O
JOGO DO FAZ DE CONTA
O
momento da brincadeira, da roda de leitura, do faz de conta, se constitui num
exemplo de uma atividade na qual a criança poderia ser vista como se estivesse
num mundo só seu, num mundo de fantasias, pois neste momento estão engajadas
umas nas outras, construindo e compartilhando significados.
Ao
brincar de faz de conta ou ao se contar/recontar determinada história, uma
criança transforma os objetos presentes em alguma coisa que não corresponde
aquilo que é na realidade. Transforma o ambiente, representa personagens,
personifica animais, trata objetos inanimados como animados e por meio desses
recursos, a criança tanto retoma significados já vivenciados como também
constroem significados que faz sentido naquele momento de interação. Ela
subordina os objetos e sua própria ação. Vygotstky (1984) observa que uma
criança pequena, age de acordo, apenas, com seu campo perceptivo imediato e,
por conta disso, seu comportamento é restringido pelas situações ambientais.
Wallon
a partir de suas concepções sobre a ausência de planos distintos no pensamento
da criança, na idade entre dois e três anos, afirma como momento oportuno para
adentrar no mundo do faz de conta. Sendo assim, o faz de conta serve como um
meio pelo qual a criança experimenta as diferentes representações de acordo a
sua visão de mundo. Transformar uma coisa em outra, apresentar algo sem sentido
como ferramenta, como objeto de sentido para o contexto, são expressões de um
mesmo fenômeno psicológico: o de representar.
Segundo
Wallon, a representação seria o resultado da duplicação do real, saindo do
plano do sensível e do concreto em um equivalente, formado de imagens, de
símbolos e de ideais.
Desta
forma, a brincadeira do faz de conta evidencia-se tanto pela representação
quanto pela linguagem, apresentando expressões do contexto social na forma de
símbolos que terão seus significados criados e alterados, pela criança, durante
todo o processo (KISHIMOTO, 2011).
O
pensamento da criança pequena permanece dominado por impressões sucessivas sem
analisar e diferenciar as relações entre as coisas e as situações. É um
pensamento concreto e sincrético, impotente para se decompor em partes que
possam ser articuladas e reorganizadas de outra forma e assim possam
corresponder a outras experiências.
Falta
ao pensamento um campo de representações onde ele possa evoluir. E este é o
momento ideal para desenvolver-se e construir a função psicológica de
representar, expressando umas as outras, os diversos significados que tem das
coisas, de tudo e de todos que estão a sua volta.
Leitura e Interpretação
As
leituras de uma estória são infinitas e torna-se inadequado pensar no que elas
querem dizer.
Ao
se contar ou ouvir uma determinada estória, há de se buscar novos olhares,
diferentes interpretações que se sucedem despercebidamente, visto que há
inúmeras interpretações para um mesmo assunto, tornando a leitura
enriquecedora. Esse momento de inserção na linguagem, na leitura da palavra, na
arte, reforça, desperta e acrescenta conhecimento, tornando o momento
significante e oportuno.
Uma
estória expressa algo, e que em meio a inúmeras visões de mundo, traz consigo
seus significados. Estes, por sua vez, virão a partir da leitura/interpretação
que cada indivíduo realizará.
A
visão, à interpretação do ouvinte assim como do narrador, a subjetividade em
questão, é um momento único, pessoal, de encantos e desencantos, de acordo a
linha de raciocínio do ouvinte assim como do leitor, cada qual vivenciando a
seu modo.
A
leitura seja ela para si ou para outros, traz em si a oportunidade e
possibilidade de aprender, e apreender diferentes pontos de vistas, elaborar
entendimentos múltiplos sobre determinado assunto, visto que na busca
incessante de uma visão complexa, em que as discordâncias e os antagonismos não
são motivos para divergências, mas sim, possibilidades de ampliação de
conceitos e saberes, do entendimento sobre o que se fala e o que se ouve, num
momento em que emissor e receptor interagem e compartilham saberes.
A
leitura nos permite desdobrar as características e propriedades dos elementos
da estória, trabalhando a dimensão de cada elemento e por fim o todo,
aprofundando as vivências que a estória proporciona. Um processo de construção
e reconstrução, na medida em que os ouvintes fazem suas interferências e por
vezes, inferências.
A Criação das Narrativas
A
estória/história marca um profundo sentido de subjetividade e procura, a arte
do encontro, do diálogo, da troca, ampliando as perspectivas dos sujeitos
envolvidos, ressignificando o sentido de estar ali.
A
narração de estórias possibilita trabalhar de forma sistemática, aprimorando e
revigorando recursos internos e externos ligados ao processo de
ensino-aprendizagem. Este processo traz consigo uma gama de oportunidades e
experiências estéticas enriquecedoras, à medida que reforça a relação entre os
envolvidos, exigindo do emissor uma visão mais elaborada e estratégica para tal
realização.
O homem é capaz de auto determinar-se,
e isso quer dizer que nas suas atividades mentais pode dirigir certas
atividades: os meus projetos podem orientar o meu olhar e torná-lo mais hábil e
preciso, também posso construir a minha memória, a minha linguagem, os meus
sentimentos. Sem sair de mim mesmo, vou me afastando de mim próprio, porque o
poder poético, construtivo da inteligência não se exerce apenas para fora, mas
também para dentro, para a própria fonte dos meus atos (MARINA, 1995, p.97).
É
neste sentido que as histórias tradicionais, os contos, as lendas, pra não
dizer a própria arte, exerce um papel fundamental, que vai além do incentivo a
leitura ou do desenvolvimento da linguagem, comunicação.
Ao
narrar uma história o narrador apropria-se de uma ferramenta subjetiva,
acrescentado de uma relação intrínseca entre estórias e desejos, mobilizadora
que estabelece uma relação significativa entre os participantes, no qual o
falar, o ouvir, os gestos, as expressões, o ensinar e o aprender, se sucedem à
medida que educador e educando caminham juntos, dialogam com o texto, pensam,
produzem gestos , sentimentos e condutas simultaneamente.
A
peculiaridade no processo de preparo torna o trabalho específico. Porém este
trabalho não pode ser feito de maneira qualquer, apesar da possibilidade de ser
feito por qualquer individuo, seja ele educador ou não. O necessário é o conhecimento, a sensibilidade, habilidades,
técnicas e estratégias que uma boa leitura
se permite fazer, levando em
conta uma série de questões ligadas tanto as estórias quanto ao trabalho da
narração em si. Há de se preparar para contar uma estória, e há de se preparar
uma história, para contar-se.
Há
de se considerar a adequação do espaço. Preparar-se para o momento, preparar o
ouvinte, tornar o espaço e o momento atrativos, fazer uma espécie de
aquecimento / concentração, tornando o momento esperado, significativo.
No
momento da leitura é importante conhecê-la, saber suas origens, quantos anos
ela tem, por quais e quantas pessoas essa estória foi passada, como se
modificou ao longo do tempo, quais transformações surgiram em meio as leituras,
quais as possibilidades de deixá-las mais enxutas, ou quais acréscimos foram e
podem ser feitos a partir da leitura do texto original.
As
histórias, por serem frutos da criação humana, de suas vivências, experiências,
trazem consigo inúmeras possibilidades e uma flexibilidade oportuna, à medida
que possibilita diferentes olhares, interpretações e ou acréscimos, inúmeras
formas de ações sobre um único objeto, despertando o imaginário, esteja ele na condição de ouvinte ou na condição de
narrador, apropria-se , cria e recria, altera sua forma, deixando sua
imaginação fruir como que livremente, fazendo sua leitura do mundo. A leitura
que, de acordo a Paulo Freire, precede a palavra.
O
jogo simbólico da Narrativa
A
leitura traz consigo uma espécie de jogo, o que nos permite ressaltar a visão
de Piajet quando fala sobre o jogo simbólico, no qual a criança apropria-se daquilo
que percebe da realidade. A evolução começa com a fase puramente reflexiva,
passando pela fase da assimilação, do simbolismo até chegar à acomodação.
Esse
jogo na visão de Vigotsky se dá por um processo social, a interação com o outro
e a linguagem fazem o desenvolvimento cognitivo acontecer.
O
sujeito é interativo e, por este motivo, dá tanta importância à fala.
Estabelece uma relação estreita entre o jogo e a aprendizagem, advertindo que o
desenvolvimento cognitivo resulta da interação entre a criança e as pessoas com
quem mantém contatos regulares, entre a sua realidade e o que está próximo de
si.
Numa
narração de estórias o jogo das interações deve promover organização e ordem.
Na medida em que a estória se desenrola, a concentração do narrador e do
ouvinte, estando ele sozinho ou em grupo, seguidos da utilização de recursos
internos e externos, tais como concentração, criatividade, estratégia,
adequação de espaço, este sistema é mais do que a soma das partes, pois deste
todo emergem características que não se apresentam nos componentes isolados ou
organizados em outros sistemas, pois uma audiência, um grupo, nunca será igual
ao outro, o momento é único.
Pode-se
contar a mesma estória para grupos diferentes e até a mesma estória para o
mesmo grupo em encontros diferentes, e a interação, quase sempre, será
inovadora, ou seja, são construídos a cada leitura, verdadeiros sistemas, pois se
trata de uma globalidade em que estão envolvidos diversos outros sistemas; cada
ouvinte, o ouvinte com o grupo, a estória, o ambiente, os recursos, o narrador,
enfim, todo um aparato onde pessoas se agrupam, dialogam e fazem suas
inferências e interferências sejam elas objetivas ou subjetivas em tempo real.
Arte de Narrar História
A
importância da observação e do quanto à arte traz significação ao narrador de histórias,
nos deixa uma questão: O que se aprende e o que se ensina ao ouvir histórias?
A
narração é um produto de unidades articuladas.
Tais
elementos se configuram como o tecido da narrativa. A trama/discurso, aquilo
que com base permite criar e interpretar tais elementos quando no processo de
interação com a obra.
As
pistas fornecidas pelos criadores poderão tanto auxiliar quanto,
propositalmente, dificultar o processo de compreensão. A trama que representa a
arquitetura da obra nos fornece dados referentes à narrativa,
tempo/espaço/foco.
O
foco narrativo diz respeito à posição assumida pelo narrador. É fator
determinante na construção e corresponde ao ponto de vista por meio do qual
flui a narração. Ás vezes onisciente, atento a tudo o que acontece, ou por
vezes, o discurso/obra narrado em primeira pessoa, faz-se parte integrante do
contexto, vivenciado a situação e assumindo particularidades.
É
importante considerar o narrador numa posição central, envolvido tanto quanto
os ouvintes, entretanto, numa posição privilegiada, podendo olhar e ser olhado,
observar e ser observado, centrado, dentro de um ambiente planejado,
envolvente, materializando as imagens contidas em meio a leitura, a escolha do
texto/história. Pensando em cada detalhe, para que das partes se forme o todo.
O
insight, o improviso, a intuição, aspectos questionados por muitos, não é algo
espontâneo, como pode parecer de imediato, tem como base muito estudo, sustentado
pela experiência, pesquisa e observação.
Há outros processos ainda, como por
exemplo, o da soma. O artista vai juntando.. juntando... juntando... tudo o que
ele acha que lhe servirá para sua criação: cartas, fotografias, rascunhos, esboços,
rabiscos feitos por acaso, rasuras, telefonemas, desprezos, tristezas, amores,
abandonos, passeios, etc... um dia, consultando este material, cavucando os
recônditos na memória, a partir de um deles, ou de mais de um, ou de todos, o
artista poderá ter o famoso insight, dando inicio, assim, a sua criação
(FORTUNA, 2002, p.63).
Desta
forma, antes de defender a necessidade de uma aprendizagem no campo da Arte,
para aqueles que não pertencendo a uma cadeia de transmissão oral da história, desejam
se tornar narradores é preciso situar à prática de contar histórias como uma
prática artística.
Durante
muito tempo a arte foi entendida como um dom, uma habilidade inata do qual
algumas pessoas são dotadas. Este pensamento reflete o julgo de senso comum,
ignora-se, portanto, o conceito educativo no qual o indivíduo se encontra
inserido.
A
aprendizagem é fruto de processos complexos de pensamentos, e não um mero
momento de imitação e ou de reprodução. A aprendizagem se dá através de
estímulos, do acesso a inúmeras informações. Por traz do que se ouve ou do que
se vê existe uma ação cerebral que processa, interpreta, dirige e reelabora,
apropriando-se, não como uma cópia, mas como uma nova produção. É um processo
de reconstrução a partir da assimilação, da compreensão, da sensibilidade e do
poder de transformação.
Há enfim, processos... processos... e
processos...de criação, dos mais variados e exóticos percursos. Eles podem ser
mais emocionais , menos emocionais; mais intuitivos, menos intuitivos; conter
uma carga maior e menor de sensações; mais casuais ou menos casuais; mais
causais e menos causais; entretanto, nenhum deles pode passar sem o crivo da
razão ou sem a administração das pulsões emocionais do criador. Se o processo
de criação, ficar o tempo todo, só nos sentidos, por exemplo, o artista não
gestará a obra futura (FORTUNA, 2002, p.63).
O
trabalho com histórias tradicionais, nas escolas, vai além de incentivar a
leitura.
O
diálogo entre as diferentes formas de expressão artística, tem sido , por sua
vez, uma das importantes modalidades de comunicação, inventadas pelo homem,
produzindo abstrações e sentidos dos mais diversos, demonstrando que ao longo
do tempo, com o passar dos anos as obras, os contos ou mesmos as lendas estão
em constante interação.
Arte não é apenas básico, mas
fundamental na educação de um país que se desenvolve. Arte não é enfeite. Arte
é cognição. É profissão, é uma forma diferente da palavra para interpretar o
mundo, a realidade, o imaginário, e é conteúdo. Como conteúdo, a arte
representa o melhor trabalho do ser humano (BARBOSA, 2005, p.4).
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